segunda-feira, 31 de agosto de 2015



quinta-feira, 11 de junho de 2015


A Fotografia existe?





 "Por exemplo, Cristina Garcia (sic) Rodero e o seu trabalho
sobre a Espanha Oculta ensinou(sic)-me que não se fazia
um projeto em três meses, que era uma questão de anos."
 (Txema Salvans, Photo Réponses hors série nº 19, p.91)


A marca de água da fotografia foi a sua fidelidade ao real. É essa fidelidade que Henry Fox Talbot (o inventor do negativo) reivindica em 1846, em The pencil of Nature: "Uma vantagem da descoberta da arte fotográfica será o permitir-nos introduzir nos nossos quadros uma imensidade de minúsculos detalhes que se somarão à veracidade e ao realismo da representação, mas que nenhum artista se daria ao trabalho de copiar fielmente da natureza"; é por causa dessa fidelidade que Baudelaire - em 1859, num texto fascinante em que consegue, simultaneamente, ter toda a razão e não ter razão nenhuma - arrasa a Fotografia: "Em matéria de pintura e estatuária, o "Credo" atual das gentes do mundo, sobretudo em França (e não me parece que quem quer que seja ouse afirmar o contrário), é este: ‘Creio na natureza e só na natureza (há boas razões para isso). Creio que a arte é e só pode ser a reprodução exata da natureza (uma seita tímida e dissidente pretende que os objetos repugnantes da natureza sejam afastados, como um penico ou um esqueleto). Assim, a indústria que nos desse um resultado idêntico à natureza seria a arte absoluta.’ Um Deus vingador satisfez os votos desta multidão. Daguerre foi o seu Messias". É mesmo esta a postura de Barthes, em A câmara clara (1980): aí, a fotografia (qualquer fotografia) "diz: ‘isto, é isto!, é assim!’ Mas não diz mais nada"; "não pode sair desta pura linguagem deítica"; "não se distingue nunca do seu referente (daquilo que representa)".
Quanto a esta questão, estamos conversados: a história encarregou-se de nos mostrar como as fotografias, ao longo do tempo, têm sido manipuladas, de modo a delas excluir certas presenças, e ainda este ano deu-nos mais um exemplo significativo, na versão só para homens da fotografia do desfile de repúdio pelo atentado contra a redacção de Charlie Hebdo, em Paris, publicada não sei em que jornal israelita (ainda mais próximo de nós, temos o caso da imagem de Jorge Jesus, entretanto transferido para o Sporting, obliterada da fotografia comemorativa do bicampeonato de futebol do Benfica). O próprio Txema Salvans, na mesma entrevista cujo excerto serve de epígrafe a esta breve (notar a ironia) reflexão, se demarca desse mito fundador da Fotografia: "tento documentar através do meu olhar que não é objetivo. Como é que o poderia ser? Na fotografia, não há objetividade" (idem, p.92).
Na mesma semana em que li a entrevista de Salvans, descobri, na imprensa nacional, que a exposição Génesis, de Sebastião Salgado, vem a Lisboa: estará - como se diz - patente ao público na Cordoaria Nacional, em Lisboa, de 8 de abril até agosto. "Fotógrafo brasileiro levou oito anos a concretizar projeto", subtitula o Público. Outros falam de dez anos, mas não é o número em si que interessa: é a palavra "anos", precedida de um numeral. Junte-se-lhe a apreciação que Salvans faz do trabalho de Cristina García Rodero e parece ser, agora, não o real – cuja dívida a Fotografia, pelos vistos, já pagou (embora o mais provável seja que a tenha esquecido) – , mas sim o tempo, aquilo que sanciona/valoriza a prática fotográfica. Talvez que a fatalidade da Fotografia não seja, afinal, a sua dependência da realidade, mas sim a sua incapacidade de existir sem alibis.






quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Da fotografia de guerra como um concerto de verão

       
          Esta fotografia é de Yuri Kozyrev e recebeu o primeiro prémio na categoria de spot news, no World Press Photo de 2012. Tirada na Líbia, durante os combates travados na cidade de Ras Lanuf, mostra um grupo de homens procurando, aparentemente, refúgio. Vários elementos na imagem permitem caracterizar o espaço em que a ação decorre como um teatro de guerra: ele é a peça de artilharia (antiaérea?) em torno da qual os homens se agrupam; as cápsulas de diferentes projéteis no chão; o fumo que se eleva, ao fundo, em duas colunas; uma figura em segundo plano, empunhando o que parece ser uma arma de fogo. A situação registada envolve, seguramente, perigo: os homens correm curvados, como se procurassem evitar ser atingidos; o próprio fotógrafo, no centro da ação e sentindo-se também ameaçado, não pôde cuidar o enquadramento da imagem, cuja linha de horizonte se inclina para a esquerda, acentuando assim a sensação de perigo iminente. Ao mesmo tempo, esta inclinação diz-nos que estamos perante uma situação de instabilidade e remete para o contexto da foto: a chamada “primavera árabe” – ou, mais precisamente e neste caso, a luta pelo derrube de Kadhafi, na Líbia. A presença no local do combate de vários homens, todos desarmados, vestidos de modos diversos, fala-nos da adesão da população civil a essa luta; e o facto de as figuras dispersarem, a partir de um centro comum, em todas as direções mostra-nos a desagregação do regime, sem que seja possível perceber qual o novo rumo que o país tomará.


       

         A segunda fotografia é de Paul Conroy, repórter da Reuters. Como se pode verificar pelo grupo de figuras situado à direita da imagem, esta foto foi feita ao mesmo tempo que a de Kozyrev – a escala da diferença temporal entre ambas há de ser da ordem do milésimo de segundo. Tratando-se da mesma situação, a publicação da fotografia de Conroy ajuda a esclarecer a de Kozyrev: estamos no dia 11 de março de 2011, e se toda a gente procura, precipitadamente, refúgio, isso deve-se ao facto de aquele local estar a ser bombardeado, naquele momento, pelos aviões das forças fiéis a Kadhafi. Posto isto, é evidente que se trata de duas fotos distintas: Conroy centra-se não na população local, mas nos seus próprios pares, outros fotorrepórteres; estes afastam-se de um modo bem mais ordenado (ao contrário da população civil, trata-se de gente com experiência de guerra, adquirida em situações semelhantes àquela representada) – todos eles correm na direção do fotógrafo, exceto aquele que será, presumivelmente, Kozyrov (podemos supor que serão suas as pernas, vestidas de calças de ganga, que se distinguem entre os dois últimos fugitivos, a contar da esquerda), o qual esperou mais alguns segundos para fazer a foto premiada. Se a primeira foto revela a realidade da guerra na Líbia e comenta a mudança inevitável – e desconhecida – que se lhe seguirá, a segunda é mais uma reflexão sobre a importância que a guerra tem para os meios de comunicação (veja-se como, na imagem de Conroy, os jornalistas ocupam cerca de três quartos do campo, enquanto a guerra em si fica acantonada numa estreita faixa à direita) e sobre as condições e perigos da prática do fotojornalismo, mostrando os seus profissionais tão desamparados e vulneráveis como os civis.
        A relação da guerra com a fotografia vem de longe, mesmo quando esta não dispunha de meios técnicos capazes de dar conta daquela em termos tão dinâmicos como agora. Quando Roger Fenton (1819-1869) fotografa a guerra da Crimeia (1855), ou Timothy O’Sullivan (1840-1882), a guerra civil americana (1861-65), o tempo de pose necessário para impressionar as emulsões fotográficas era demasiado longo para que pudessem ser registados mo(vi)mentos como os que, hoje em dia, motivam o trabalho de repórteres como Kozyrev, ou Conroy. Assim sendo, Fenton opta por sugerir a violência dos combates mostrando-nos os campos de batalha juncados de balas de canhão (e estou certo que aqueles que forem como eu não deixarão de apreciar a influência de Fenton, reconhecível nas cápsulas de projéteis tombadas na fotografia de Kozyrev); O'Sullivan, por sua vez, dá-nos a ver o horror da batalha de Gettysburg (1-3 de julho de 1863) fotografando os cadáveres no terreno, após os combates.
                        
                                              Roger Fenton, Crimeia (1855)

         
       Timothy O’Sullivan, Gettysburg (1863)

         Não é, porém, uma questão técnica que está em causa, nas fotos de guerra que se veem hoje: é mais, diria eu, uma questão de escala. O que nos diz a densidade de fotógrafos por metro quadrado na foto de Conroy? Por um lado (como já foi referido), diz-nos a importância que a guerra tem enquanto tema noticioso, e o peso da imagem nas notícias; mas diz-nos igualmente que aquilo que as notícias prometem excede, em muito, aquilo que elas dão: sete (pelo menos) fotógrafos idos para a Líbia – vasto país do Norte de África – reduziram o seu testemunho à dimensão do ponto onde captaram as suas imagens, divulgadas depois pelos meios de comunicação que os enviaram como sendo ilustrativas de uma revolta de dimensões nacionais. Contudo, não é apenas o espaço que é sujeito a uma violenta compressão de perspetiva, neste processo de tradução da realidade em termos noticiosos: aquilo que vemos, ao passarmos da foto de Kozyrev para a de Conroy, é uma idêntica compressão do tempo – ou, por outras palavras, os fotógrafos não estiveram só no mesmo local, também fizeram fotos ao mesmo tempo; e nós, consumidores das notícias, vemo-nos a medir distâncias de centenas de quilómetros e durações de meses com réguas de metros e minutos.
       Neste aspeto, parece-me que a fotografia de guerra não se distingue muito da fotografia de um qualquer concerto de música pop: aos fotógrafos, é permitido postarem-se num único sítio (à frente do palco) e fotografarem como entenderem, durante um período de tempo limitado (alguns minutos, ou as primeiras cantigas); e eles entram ordeiros, quando lhes dizem para entrar e saem ordeiramente, quando lhes dizem para sair. As fotos obtidas nesses primeiros pouco minutos serão o retrato de um concerto que durará duas horas e nunca corresponderá ao que se passou em palco.
      Não se trata - evidentemente! - de pôr em causa a decisão e a coragem dos repórteres de guerra. Inúmeros fotógrafos morreram (e outros continuam a arriscar a vida) nos palcos da chamada primavera árabe – Tim Hetherington, Chris Hondros, Rémi Ochlik… Mais próximo da nossa sensibilidade, em 2010, João Silva, um fotógrafo português, ficou sem ambas as pernas, ao pisar uma mina em Kandahar, no Afeganistão. Poderíamos, infelizmente, falar de outros casos; mas não precisamos, sequer, de sair do âmbito das imagens que aqui nos trouxeram: pouco tempo depois de Conroy ter feito a sua foto, Lynsay Adario (primeira a contar da esquerda, cortada pela borda da imagem) e Tyler Hicks (primeiro à direita, de óculos) foram detidos pelas autoridades líbias para averiguações e dados como desaparecidos durante mais de uma semana; de facto, chegou-se a temer pela sua vida. Acabaram por ser libertados ilesos, embora Adario tenha denunciado ter sido molestada sexualmente. Aquilo para que este texto quer chamar a atenção é para a situação do leitor, o espetador de fotos de guerra, e a apreensão errónea que ele faz da realidade que lhe é servida, mediaticamente. O que está em causa, em última instância, é – ainda e sempre – a suposta relação de transparência entre a fotografia e o real, a sua impossível adesão.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Nós e os nus

East Sussex coast (1957)
Bill Brandt (1904-1983)



Corpos em praias não constituem motivo para surpresas, mas há modos e modos de os mostrar. Nesta foto de Bill Brandt, a questão do mostrar é primordial: o que é que se vê, aqui? De cima para baixo, dividida em terços de extensão equivalente, a imagem representa, primeiro, uma falésia e um céu carregado, de textura quase tão pedregosa quanto ela; depois, um troço de praia rochosa; finalmente, um pormenor de uma cabeça humana, destacando uma orelha. A pouca importância relativa dada a cada um destes elementos faz com que não se perceba, de imediato, qual é o centro desta foto: falta céu, para que a tempestade possa constituir o seu tema; o penhasco e a praia não são de molde a permitir localizar categoricamente o ponto da costa em que se situa a cena; e o detalhe da figura humana é tão pequeno que ela está para lá (ou para cá?) de qualquer hipótese de reconhecimento – não conseguimos, sequer, perceber o seu género, ou idade. Felizmente, dispomos de elementos externos que levantam um pouco o véu do mistério: esta foto aparece no livro Nudes 1945-1980 (1980). A data bate certo: 1957 situa-se entre 1945 e 1980; logo, isto há de ser um nu.
            À partida, parece não haver grandes razões para esperar (e, consequentemente, aceitar) que a representação de uma orelha se enquadre num género em que nos habituámos a ver as formas humanas exibidas mais amplamente. Aliás, se  desmanchássemos o corpo humano e atribuíssemos a cada género fotográfico os membros mais prezados pelas respetivas práticas, suponho que a orelha iria, direitinha, para o retrato; consensualmente. Dá-se, porém, o caso (embora isto possa irritar muitos) de a produção artística não ser uma atividade regida por consensos; e daí resulta precisamente que, com frequência, a exibição de imagens – fotográficas, ou outras – se defronte com a intransigência de códigos morais e legais que procuram negar àquelas a exibição pública, mesmo em espaços que a elas pareciam dedicados, como sejam, por exemplo, os museus. O sururu póstumo à volta da obra de Mapplethorpe (1946-1989) é um bom exemplo – e fotográfico, ainda por cima; embora, no seu caso, as vozes críticas considerem que as suas fotos pecam não pelo escasso, como a que nos ocupa presentemente, mas pelo excesso.
            De uma coisa podemos estar certos, porém, ao vermos as fotos de Nudes 1945-1980: esta orelha não é um lapso, inscrevendo-se, pelo contrário, numa galeria de imagens “impróprias”, enquanto nus: pés; joelhos e cotovelos; mãos; dedos, apenas… Os nus de Bill Brandt são-no, no limite, porque representam partes do corpo livres de qualquer roupagem; mas essas partes não são as adequadas (as “boas”). Pudor do fotógrafo em confrontar-se com a visão do corpo feminino, ou (justo) receio em desencadear a ira persecutória de instâncias censórias? Não em ambos os casos, e por duas razões: por um lado, porque junto a estas imagens menos habituais, vemos nus ortodoxos – com seios, coxas, nádegas e púbis devidamente destacados; por outro, porque esta aproximação excessiva ao fotografado, de modo a isolar um detalhe insuficiente (em termos dos códigos que regem a expetativa do público) manifesta-se, igualmente, no modo como o fotógrafo trata outros géneros fotográficos – nomeadamente o retrato e a paisagem. A questão deixa de se pôr, assim, em relação aos nus de Brandt, para se estender a outros campos da sua obra.

                                                                   
            B. Brandt, Wiltshire, 1948                                                     B. Brandt, Jean Arp, 1960   

    
Tomemos, por exemplo, o caso de “Jean Arp”: ao identificar o artista pelo seu nome próprio (situando-o, através da data, num determinado ponto do curso da sua vida), esta foto assume-se como um retrato. Porém, ao enquadrar demasiado perto, demasiado pouco o rosto de Arp, Brandt desarma a lógica do género, tornando irreconhecível uma figura cujo reconhecimento, precisamente, o retrato devia celebrar. E este não é caso único: Brandt retratou outros artistas segundo a mesma convenção – isto é, de modo a que apenas um dos olhos preencha a totalidade (ou quase) do campo da foto. Tal acontece, por exemplo, também em “Giacometti” (1963), “Georges Braque”e “Jean Dubuffet” (ambos de 1960), ou “Max Ernst” (ainda de 1963). Poderíamos ver em todas estas fotos um esforço original para nos revelar o íntimo de grandes criadores: são os olhos, ou não são, as janelas da alma? Nesse caso, aproximarmo-nos, ao ponto de encostar a cabeça ao vidro, pode ser um bom modo de ficarmos a conhecer o que está por trás delas… Mas não: tal como em “East Sussex coast”, a excessiva proximidade deturpa a intenção inicial e torna o fotografado ilegível, à luz do género em que a foto originalmente se insere. Do mesmo modo, a promessa de paisagem que é “Wiltshire” (de seu nome completo, “Barbary Castle, Malborough Downs, Wiltshire”), de 1948, é anulada pela estreiteza do campo da foto, ridiculamente reduzido pela interposição, em primeiro plano, de um acidente de terreno, o qual impede, ainda por cima, todo o efeito de perspetiva que permitisse, ao menos, uma ilusão de profundidade! O que é mostrado resume-se, assim, a uma estreita língua de terra, onde dois arvoredos se destacam sobre uma linha do horizonte apenas percetível, numa abstração bidimensional que nega o largo espaço e visão panorâmica típicos da paisagem.
            Face a isto, poderemos falar de uma estética da deceção? A obra de Brandt consistiria na demonstração da impraticabidade dos géneros, feita através de uma estrita observância dos seus mecanismos representativos levada aos limites? Considerá-la assim, no entanto, seria esquecer uma parte ainda mais significativa da obra do fotógrafo, em que retratos, nus e paisagens estão em harmonia com os cânones dos respetivos géneros. Penso que uma leitura como a sugerida atrás seria redutora, e que estas fotos de Bill Brandt não pretendem mostrar a sua própria impossibilidade, mas sim interpelar as expetativas de quem as acolhe.  No fundo, perguntam-nos até onde estamos dispostos a ir por uma fotografia – o que é que consideramos aceitável num nu, num retrato, ou numa paisagem, forçando-nos assim a questionar os nossos pressupostos e a tomar consciência dos nossos próprios limites. Finalmente, esta é uma questão particularmente delicada: no caso dos nus, por exemplo, aquilo que aceitarmos ou recusarmos pode determinar a sua visibilidade, ou encorajar formas institucionais de censura. Aqui chegados, já estamos para lá dos limites da representação, ou das expetativas dos públicos, ou da arte: é aqui que se negoceiam os limites ao direito à liberdade de expressão, e a participação nesse debate será tanto mais eficaz quanto melhor os intervenientes conhecerem as suas próprias motivações.  

quinta-feira, 15 de março de 2012

O jardim das delícias

Jardins du Palais Royal (1959)
Henri Cartier-Bresson (1908-2004)
                                                                                                      


Ninguém pode entrar aqui, se não for geómetra.
 (H. Cartier-Bresson)


        Num texto em que trata das relações da Fotografia com a Matemática (“Curiosity and Conjecture – Mathematics, Photography and the Imagination”; in At the edge of the light, 2003), David Travis compara a demonstração do Teorema de Pitágoras feita por Euclides com a obra de Cartier-Bresson. A imagem usada por Travis para ilustrar essa comparação é “Hyères, França, 1932”, uma foto dos primeiros anos da carreira do fotógrafo (é o próprio autor quem diz ser nessa fase que o “sentido básico de geometria” em HCB é “óbvio”). Com essa imagem, Cartier-Bresson demonstraria ser não apenas um fotógrafo de apurada sensibilidade geométrica, mas também dotado do “génio” capaz de transcender esse sentido básico, acrescentando-lhe outro elemento, criador de uma nova dimensão. 
 HCB, Hyères, França, 1932

Em “Hyères, França, 1932”, segundo Travis, a rua, o corrimão e os degraus, só por si, já compõem uma imagem geometricamente interessante. O  golpe de génio, porém, está em ter sabido esperar pela passagem de um ciclista, inscrevendo-o nessa grelha geométrica. A partir desta constatação, Travis conclui, generalizando que as fotos de Cartier-Bresson montavam uma “armadilha geométrica”, à qual era acrescentado um outro elemento, representativo da “dimensão do incidente”.
Falar de geometria a propósito da obra de Cartier-Bresson não pode considerar-se uma audácia crítica inusitada, uma vez que o próprio passou toda a vida a chamar a atenção para a sua importância na composição fotográfica… Já a invenção do elemento ocasional parece justa, uma vez que, por um lado, encontramos, de facto, várias fotos de HCB em que reconhecemos a combinação de uma rede geométrica estável com um elemento transitório – sendo esta “Jardins do Palácio Real”, provavelmente, disso o melhor exemplo; mas parece justa, também, porque retoma (os termos são diferentes, mas as dimensões idênticas) a teoria do studium e do punctum de Barthes (La chambre claire (Note sur la photographie), 1980), reforçando, deliciosamente, a asserção de Roumette, para quem “os fotógrafos são pessoas que sabem contar até dois, raramente mais do que isso” (Lettre à un aveugle sur des photographies de Robert Doisneau, 1990) e inscrevendo-se, assim, na tradição dos estudos fotográficos (na Fotografia, como em qualquer campo da crítica, só são reconhecíveis as contribuições que se relacionem com percursos anteriores, quer os contestem, quer os prossigam). Podemos, muito facilmente, partir da conjetura (a palavra é dele) de Travis para a análise de “Jardins do Palácio Real”: de um lado, temos a “armadilha geométrica”, por demais evidente – a grelha formada por uma série de linhas paralelas (primeiro o edifício, depois os renques de árvores) que, por efeito da perspetiva, convergem para um foco situado em cima e à esquerda, fora do campo da imagem;  de outro, a figura humana em baixo, do mesmo lado (um transeunte ocasional), a qual acrescentaria a necessária “dimensão do incidente”. Deste modo, prova-se correta a conjetura de Travis e reconhecemos como tipicamente bressoniana esta imagem.
Mais do que justa, a invenção do elemento capaz de introduzir numa rede geométrica a dimensão do incidente parece-me mesmo pertinente, em termos da compreensão da obra de HCB. Para ser franco, nunca me senti confortável com as análises demasiado formais das suas fotos: embora reconhecendo e aprovando (se nem sempre esses textos, pelo menos os pressupostos de que partem) a importância da composição nas imagens de Cartier-Bresson, parece-me que, insistindo na vertente geométrica da sua criação, se tende a esquecer que estamos a falar de um fotógrafo que se definia como repórter e que sempre teve como preocupação expressa contar o Mundo, mostrar a História a ser feita. O próprio HCB – no seu mais célebre e conhecido texto (“L’instant décisif”, prefácio a Images à la sauvette, 1952) – atribui à avaliação geométrica de uma imagem um caráter a posteriori : “Toda a análise geométrica, toda a redução a um esquema não pode, como é óbvio, produzir-se senão após a foto estar feita(…)”; e se é verdade que “[a) composição deve ser uma das nossas preocupações constantes”, “[e)spero que nunca vejamos o dia em que os comerciantes vendam esquemas gravados nos visores” (sublinhados meus). A postura de Cartier-Bresson é clara: as linhas que estruturam o motivo fotografado não se lhe devem sobrepor (estar gravadas no visor), e o valor formal de uma fotografia, constituindo uma (apenas) preocupação do fotógrafo, só pode ser reconhecido após a imagem realizada.
É a espessura da realidade que me parece estar, infelizmente, arredada da análise da obra de HCB, quando aquela se centra demasiado nos aspetos formais desta. Insistir na acuidade geométrica da composição bressoniana leva-nos, inevitavelmente, para o reino da Geometria – a abstração, o mundo da pura forma – e uma vez aí chegados, de abstração em abstração, corre-se o risco de confundir o real com o simbólico.  Não é difícil, por exemplo, ceder à tentação de ler “Jardins do Palácio Real” como uma “metáfora” da condição humana: perdido no labirinto do Mundo que o excede desproporcionalmente e esmaga com a sua organização severa e inflexível, o Homem está condenado a errar claustrofobicamente num espaço confinado que o sujeita e oprime, etc., etc. – a música é bem conhecida. Não tenho nada contra os símbolos, nem me servia de nada ter; nem sugiro que uma leitura geométrica seja, necessariamente, uma leitura a evitar: pelo contrário,   “Jardins do Palácio Real” pode e deve ser lida como uma magistral lição de geometria – eu próprio a leio assim e não é por isso que deixo de a considerar uma das mais extraordinárias fotos de Cartier-Bresson. O que proponho, porém, é que não seja lida assim apenas, que não nos contentemos com essa proeza compositória e percamos de vista que estamos perante um retrato da realidade, essa realidade multiforme e multímoda, irredutível a qualquer esquema. Note-se como, em “Jardins do Palácio Real” o real transborda e galga as formas que estruturam a imagem: os estores desmancham ocasionalmente, com as suas linhas oblíquas e as suas manchas claras, o conjunto escuro de verticais e horizontais que constitui a fachada do edifício, tal como as poucas lucarnas abertas põem manchas negras e irregulares no telhado; veja-se a desordem na primeira álea do jardim – percorrida por outros três transeuntes, dispostos aleatoriamente – cujo espaço visível está preenchido por um conjunto de cadeiras desarrumadas; e repare-se, finalmente, no tronco retorcido que, mesmo no centro, contraria a compostura vertical das restantes árvores. Para lá do contentamento erudito resultante da apreensão do esquema geométrico que escora a foto, há que apurar os olhos e escutar atentamente o rumor do mundo que se imiscui nos interstícios da forma; e, já agora, permitir que esse apuro aceda, da condição de lastro, à dimensão erudita.


quinta-feira, 8 de março de 2012

O banco perdido

Broken bench (1962)
André Kertész (1894-1985)

                                                                           



Na fotografia, tirada em Nova Iorque em 1962, uma figura de costas, em primeiro plano, olha para um banco partido… Ou talvez não: pela inclinação da cabeça, tanto pode estar a olhar para o banco, como para as duas mulheres, em segundo plano, sentadas num outro banco. Por efeito da perspetiva, o espaço estende-se, quase branco, da esquerda para a direita e de baixo para cima, pontuado por vários bancos dispostos sem ordem aparente e barrado ao fundo, em cima e à direita, pelos troncos escuros de três árvores que correspondem à figura ereta do primeiro plano. Trata-se, obviamente de um jardim: uma sebe, em cima e à esquerda, marca o que deve ser o seu limite, já que para lá dela se distinguem as formas de vários automóveis estacionados. O título confere uma importância determinante ao banco partido em primeiro plano, embora a imagem, enquadrando-o incompletamente, pareça negar essa importância. Talvez o título se limite a identificar o que é identificável: nem a figura de costas, nem as duas mulheres sentadas, demasiado longe, são reconhecíveis; ou talvez queira marcar o ponto de partida do fotógrafo – o qual, concentrando-se primeiramente no banco partido, foi fazendo evoluir o seu enquadramento, até juntar os elementos que considerou pertinentes para a realização da imagem. A mulher de preto é Elisabeth, a mulher de Kertész, à época a convalescer. É o próprio fotógrafo que o conta: voltavam do médico – ele, a mulher e uma amiga – e Elisabeth, cansada, quis sentar-se um pouco. A amiga ficou a fazer-lhe companhia, enquanto Kertész deambulava por perto; e foi assim que compôs a cena que fotografou.
            Se hoje fotografo (e o modo como o faço), devo-o a Kertész,  praticamente o inventor de uma prática (que já se chamou “instantâneo” e que hoje é mais reconhecível sob a designação “fotografia de rua”) tornada possível pelo aparecimento de máquinas fotográficas pequenas e leves, objetivas luminosas e película de menores dimensões (35 mm), o que aliviou os fotógrafos da necessidade de arrastarem consigo equipamento pesado e incómodo. Uma vez libertos dos constrangimentos causados pelo material necessário até então à sua prática, os fotógrafos ficaram disponíveis para fotografar de um modo novo – rapidamente e de passagem – e ao mesmo tempo descobriram o mundo como ateliê perpétuo, operando assim a reviravolta a que Barthes se refere em A Câmara Clara: a fotografia deixa de fotografar o que é notável e ”decreta que é notável aquilo que fotografa”.
            Não me parece que a solenidade (e rispidez) que reveste a palavra “decretar” se possa aplicar à obra de Kertész. Pelo contrário, as suas fotos são ligeiras, breves, efémeros moldes de ordem construídos com o caos das coisas – tão ao arrepio dessa desordem natural que, uma vez isoladas, perdem todo o significado. Nesse sentido, o “Banco partido” parece-me ser uma imagem emblemática: não é uma foto de família, porque Elisabeth está demasiado afastada para que possa ser reconhecida; não é uma foto de reportagem, porque não acredito que, mesmo em 1962, um banco partido num jardim público de Nova Iorque fosse notícia; e mesmo que quiséssemos forçar a leitura da foto numa das duas direções anteriores, a figura inesperada e incongruente em primeiro plano estaria sempre a mais. Se a soma das partes que a compõem fica sempre aquém da imagem que é, isso deve-se ao facto de “Banco partido” não pretender ilustrar/descrever/reproduzir nenhuma verdade que pré-existisse à sua composição, ou que lhe seja exterior. Assim sendo, a imagem obriga à inversão do sentido da leitura: não se percebe lida de fora para dentro, tem de ler-se de dentro para fora. “Banco partido” inaugura o seu próprio significado, é o seu próprio significado, independente de questões sociológicas, genológicas, ou sequer referenciais. Com Kertész, a Fotografia acolhe a insignificância como valor.
            Em 1984, já grande admirador de Kertész, comprei aquela que era, à época, a mais extensa monografia dedicada à sua obra (A lifetime of perception, 1982). Nesse mesmo ano, o fotógrafo doou o seu arquivo, com todos os negativos, ao estado francês. Para gerir esse imenso e riquíssimo espólio foi criada uma comissão. No ano seguinte, com a morte de Kertész, as coisas começaram a azedar, quando a comissão se cindiu entre aqueles que consideravam legítimo tornar públicas as imagens cujos negativos constassem do espólio (embora nunca tivessem sido mostradas pelo autor) e aqueles que defendiam a decisão do artista como único critério aceitável para a exibição das suas obras – recusando, em consequência, que se divulgasse uma única imagem que não tivesse sido aprovada pelo autor em vida.
            Confesso que não acompanhei os episódios seguintes, embora o desfecho seja fácil de adivinhar a quem visitou a grande exposição da obra de Kertész em Paris, no Jeu de Paume, entre Setembro de 2010 e Fevereiro de 2011. Foi uma experiência proustiana: onde estavam as imagens que eu recordo e trago em mim, como acervo do meu museu imaginário pessoal? Vinte e cinco anos de morte não tinham apenas acrescentado algo a Kertész, tinham-no mudado significativamente. O corpus (considerado, sem dúvida, representativo) da sua obra que ali se exibia era outro: as semelhanças entre o que eu via e as fotos em A lifetime of perception eram tantas, quantas as diferenças! Assim, por exemplo, o “Banco partido” não estava lá…
 Deu para ver, então, de que modo a obra fotográfica está à mercê dos vindouros. Não em termos de análise, ou apreciativos: aí, como em qualquer outra disciplina criadora (Música, Pintura, Literatura), os autores vão refletindo diversamente, conforme a luz crítica que neles incide; mas em termos do que é reconhecido como sua obra. É claro que acontece o corpus de um autor estabelecido variar, mas são variações menores: não se encontram Picassos todos os dias, ou originais de Saramago (e o que se encontra não são nunca obras primas). Na Fotografia, porém, é diferente: aquilo que um fotógrafo aproveita é uma parte ínfima do número de fotografias que tira (uma por rolo – um trinta e seis avos, portanto – dirão alguns; uma por ano, dizia Cartier-Bresson), o que deixa um resto formidável, sujeito a toda a casta de interpretações e manipulações. Pior, quando notamos que o apropriar-se da obra de um fotógrafo após a sua morte (para decidir, à revelia, o que deve conter o seu nome) se torna gesto corrente: além da variação da obra de Kertész que nos tem vindo a ocupar, ele é Richard Whelan decidindo, no prefácio de Robert Capa Photographs, que não publicará as imagens a cores de Capa, por não serem tão boas como as a preto e branco; ele é as manas Doisneau a publicar a obra a cores que o pai menosprezou… E apesar da fundação com o seu nome, da Magnum e da mulher ainda viva, bem como da imensa admiração e respeito suscitados unanimemente pela sua obra fabulosa, já se vão vendo por aí uns Cartier-Bressons marados!...
Dei várias voltas à exposição de Kertész no Jeu de Paume e não só para me regozijar com o que via, mas também para lamentar o que faltava. Tive a perfeita consciência, nesse momento, de que a próxima vez que visitasse uma exposição sua, seria por certo um Kertész diferente que encontraria; e parti com a amarga convicção de que, tal como as casas, as estradas e as avenidas, também os fotógrafos – infelizmente! – são esquivos; sobretudo os que já morreram.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Palm Springs não tem palmas


                                                                              
                                                                                                                      R. Doisneau, Paris, 1960



O Palm Springs 1960 de Robert Doisneau (1912-1994) – primeiro livro, que eu saiba, dedicado às suas fotografias a cor – lembrou-me Eles vivem! do Carpenter: há um mundo normal, que toda a gente vê da mesma maneira, mais coisa, menos coisa; mas desde que se olhe para esse mundo através de uns óculos especiais, ele transfigura-se: passa a ser a preto e branco, com pessoas – como eu, ou qualquer um de vocês, suponho – e extraterrestres, e só o uso dos tais óculos permite distingui-los. Do mesmo modo, o mundo visto por Doisneau a preto e branco não é o mundo que todos vemos, porque só ele conseguia reconhecer grandeza nas pessoas banais com quem nos cruzamos todos os dias, sem que as suponhamos merecedoras de mais do que um olhar desatento.
            (Antes do mais, o seu a seu dono: a apreciação com que termina o parágrafo anterior é a mera perífrase – deselegante, ainda por cima – de uma frase de Jean Loup Sieff, que não recordo textualmente, nem tenho como recuperar. Paciência: nos casos em que a alternativa é a incorreção, venha a deselegância).
            Apesar da diferença fundamental que distingue o filme de Carpenter da obra de Doisneau (o mundo a preto e branco do primeiro é frio e ameaçador, inumano; o do segundo é divertido e caloroso, humano), ambos coincidem em dois aspetos: 1- é o preto e branco que nos permite passar além das aparências; 2- a realidade a cores é banalucha e pouco significativa. Ah, é verdade – ainda não tinha dito isto, pois não? Palm Springs 1960 é um livrito banalucho e pouco significativo.
            Pode, quem quiser, desinquietar-se com várias explicações para o facto de um enorme autor ter realizado imagens de uma tão confrangedora banalidade: uma coisa é fotografar Paris, onde Doisneau sempre viveu, outra diferente é chegar a Palm Springs, onde ele nunca tinha estado (nem sequer nos EUA), e despachar em dez dias uma reportagem sobre a cidade, modos de vida e atividades dos seus habitantes, utilizando, ainda por cima, película a cores, que não conheceria ou a que, no mínimo, não estava habituado. Pessoalmente, não vejo motivos para inquietações. Palm Springs foi um fiasco óbvio (todos nós temos os nossos dias maus), de tal maneira que o próprio Doisneau proscreveu as imagens daí resultantes da sua obra: entre 1960, ano em que foram tiradas, e 1994, ano da sua morte, não há uma única destas fotografias nos seus livros. A publicação (mais de quinze anos após a sua morte) de imagens que ele, implicitamente, renegou não põe de modo nenhum em causa o imenso talento de Doisneau, do mesmo modo – por exemplo – que os sonetos atrozes de Camilo Castelo Branco não me impedem de permanecer um leitor e releitor ávido dos seus contos e novelas.
            Aquilo que me parece digno de atenção em tudo isto (para além, é claro, da notória cupidez das manas Doisneau-Deroudille, filhas do fotógrafo e herdeiras dos direitos sobre a sua obra), é o modo como a cor baralha dados que tínhamos por irrefutáveis. A desproporção entre a obra a preto e branco – imensa, felizmente – de Doisneau e a modéstia deste livrito diz que o problema não está no autor, mas na cor. Por outras palavras, Palm Springs 1960 não funciona, porque a cor não funciona. As fotos são demasiado coloridas para que a magia de Doisneau atue, mas não são suficientemente coloridas para que nos interessemos pela ausência do preto e branco. Em Fotografia, o preto e branco é o que se espera (a expressão “preto e branco” devia ser obrigatória na definição da Fotografia, de tal modo está entranhada na sua prática); já a cor, porque mais natural, tende a desviar a nossa atenção, fazendo-nos esquecer de que não estamos perante a realidade. O preto e branco é, por isso, um passo em direção à abstração (ou “Arte”; neste caso, tanto faz), enquanto que a cor é um passo em direção à banalidade. Ora, não vemos do mesmo modo, não empregamos o mesmo tipo de “lentes” (ou de atenção) para olhar a Arte, ou a Banalidade; e corremos sempre o risco de trocar as lentes. Daí que a cor, para escapar à banalidade, tenha de ser evidente, tenha de tornar-se o centro da imagem. Toda a fotografia a cores fala de cor – ou tem de fazê-lo, se quiser funcionar – e é bom, por isso, que mostre saber do que está a falar. Alex Webb é um extraordinário fotógrafo, devido à violência dos contrastes e ao nível de saturação da cor nas suas fotos. Olhamos para elas e aquilo vê-se logo que não é autêntico (embora possam ocorrer “momentos Alex Webb” no mundo: afinal, a vida esforça-se por imitar a arte). O trabalho da cor em Alex Webb é tão evidente que, ao ver as suas cores, eu estou a ver o seu trabalho e não confundo, por isso, a cena trabalhada com a realidade. Por outras palavras: não corro o risco de olhar para as fotos de Alex Webb com as lentes da banalidade.

                                                                                                                   A. Webb, Haiti, 1986-88

Foi esta ostentação da cor que faltou em Palm Springs 1960. Não será por isso que Doisneau deixa de ser um grande fotógrafo: mostrou foi não ser um colorista. Numa fotografia, a cor tem de ser trabalhada e exposta logo na abertura, correndo-se o risco, caso contrário, de que não se lhe dedique o tipo de atenção necessária à sua correta apreciação. A consciência da presença da cor deve situar-se ao mesmo nível do que nos faz identificar, de imediato, o género fotográfico: primeiro dizemos “É uma paisagem”, e só depois nos concentramos na linha de caminho de ferro, em baixo à direita; ou, “É um retrato”, antes de repararmos no sinal, perto do canto da boca do modelo.
Stephen Shore (The Nature of Photographs) diz que a cor torna a fotografia mais transparente, porque a cor é mais como vemos e, por isso, somos menos detidos pela superfície. Talvez resida aí o problema da cor: a sua naturalidade permite que o olhar se embrenhe demasiado na imagem, para lá do ponto em que a estranheza do que observamos nos obrigue a um movimento de recuo e reavaliação do objeto que nos enfrenta. Por isso, se quiser ser levada a sério, a cor está obrigada a gritar a sua presença desde o início, a chamar a atenção para o modo como mostra, antes que nos alheemos e percamos simplesmente naquilo que mostra. Provavelmente, a cor é, afinal, um género – ou terá de o ser, para existir de pleno direito.

                                                                                              R. Doisneau, Palm Springs, 1960

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Um rapaz chamado Simone


Simone(1955)
Mario Giacomelli(1925-2000)





De um lado, temos a personagem principal (um rapaz sorridente); do outro, um grupo de crianças, demasiado desfocadas para que lhes possam ser apontados traços pertinentes indesmentíveis – embora seja de supor (pela data, 1955) que são também rapazes, por se apresentarem todas de calças e de cabelo curto. O rapaz isolado impõe-se, desde logo: encostado à esquerda, é por ele que se inicia a leitura; a sua figura, em primeiro plano, agiganta-se em relação aos restantes intervenientes, quer por efeito da perspetiva, quer pelo ângulo (contrapicado) escolhido pelo fotógrafo para registar a cena; e é o único elemento que está focado na imagem. Este destaque, bem como o facto de ser uma figura singular (ao contrário do grupo plural que enfrenta), levam a concluir que “Simone” deve ser o seu nome – reforçando-se assim, com a autoridade externa do título, a importância que a estrutura da imagem lhe confere. Quanto aos vultos escuros à direita, destacando-se sobre um fundo branco… que esperem: daqui a uns anos, Giacomelli dedicar-lhes-á uma das suas mais belas (e conhecidas) séries, composta por imagens de padres a brincar na neve (vista retrospetivamente, “Simone” ganha, assim, uma importância acrescida, como o primeiro ensaio de Não tenho mãos que me acariciem o rosto).
Apesar da vantagem resultante da importância que tem na imagem, Simone está inquieto: hesita, detém-se; contém-se. O corpo, lançado para diante, denuncia a vontade do jogo; porém a cabeça, virada para trás, em resposta a um apelo lançado de fora do campo, contraria o desejo do corpo. Sorri, timidamente, na expetativa: é um desconhecido que se lhe dirige – um fotógrafo – e Simone não sabe o que quer dele. Ao sorrir, porém, mostra que não vê a intervenção de quem o interpela como uma contrariedade; antes, se olharmos com atenção, notamos que parece até aliviado. É que, por muita vontade que tenha de ir correr e saltar para a neve, as palavras da mãe não lhe saem da cabeça: Não quero cá brincadeiras violentas nem correrias quando estiveres de casaco, ouviste?! O casaco que recebeu do irmão mais velho e que ainda há de ter de servir para o próximo, a quem o cederá em breve, de tal modo já lhe está pequeno. E a que se dedicam os amigos, ali tão perto e tão longe? Nem de propósito, a uma atividade que cai rigorosamente no âmbito da proibição que o sujeita: uma batalha de bolas de neve.
De momento, a batalha de Simone é interior. A alegria que o sorriso ostenta vai a par com o desconforto, também evidente, que lhe causa a atitude forçada de espetador. Este conflito era já visível na sua postura, mesmo antes de voltar a cabeça: as mãos nos bolsos desmentiam a total disponibilidade para a brincadeira. Daí que tenha ficado secretamente grato ao fotógrafo por tê-lo chamado, o que lhe dá um ótimo pretexto para não ir ter com os amigos, sem se expor à sua troça. Por outro lado, o interesse demonstrado pelo estranho intimida-o: deve ignorá-lo, voltar costas, mostrar-se desagradado? Ou, para lá de todo o incómodo, deve tratar aquele desconhecido como lhe ensinaram – com cortesia? Uma coisa Simone sabe, desde já: enquanto ele não se afastar, enquanto se sentir presa do olho de vidro da máquina fotográfica, não estará à vontade para ir brincar com os amigos. A consciência de ser o foco de uma atenção que não sabe para que é que serve é demasiado inibidora… Simone hesita – vai, não vai? – e, nesse instante da hesitação, o fotógrafo decide por ele: “Simone” diz-nos que Simone não vai.
Alegria, desconforto, expetativa, timidez, alívio, consciência de si… o rosto de Simone transborda de sentidos, muitos dos quais contraditórios. É essa abundância de sentido que faz dele uma personagem profundamente humana: ao contrário da máscara, que representa uma única emoção, o rosto de Simone ensina-nos que o humano é um composto; não existe em estado puro. Somos, a cada momento, o resultado breve de uma equação complexa, envolvendo valores e incógnitas circunstanciais e, por isso mesmo, tão variável como o são as circunstâncias. Negociamos cada instante, em nome de experiências e influências constantemente sujeitas a atualizações e revalorizações. Não pode deixar de ser assim: negá-lo condenar-nos-ia à irresolução e à imobilidade, visto que as nossas ações dependem da avaliação que fazemos do momento que as antecede. Simone, ao contrário dos seus amigos, hesita: naquele instante, no instante da fotografia, não está ainda em condições de decidir. No instante seguinte agirá, e a nós, terminada a leitura resta-nos essa deliciosa imponderabilidade: vai, ou não vai? Qual das atitudes aprovaríamos, com qual ficaríamos desapontados? Que espécie de Simone fomos, ou continuamos a ser?
 “Simone” é, afinal, uma alegoria do crescimento. A estatura de Simone (maior, por efeito da perspetiva, do que as outras crianças) e o casaco apertado são disso marcas, traços que o distinguem dos restantes intervenientes da cena. Do mesmo modo que os amigos brincam “naturalmente”, Simone hesita porque é essa a sua (nova) condição; já não pertence ali, embora ele próprio tenha ainda alguma dificuldade em aceitar o seu novo estatuto e procure iludir-se… Nós, porém, temos diante de nós toda a imagem e por isso não temos ilusões: as manchas escuras (rochas?), ameaçadoras, que se acumulam como nuvens tempestuosas sobre as crianças que brincam e que bem podem representar os perigos e dificuldades da idade adulta invadem já o espaço ocupado por Simone. Para além de dois fragmentos menores, que lhe despontam nas costas (na zona do ombro, um, na região lombar, o outro), não podemos deixar de notar como duas manchas maiores se confundem com o seu vulto, atingindo, estrategicamente, as duas sedes tradicionais do conhecimento e da ação no ser humano – a cabeça e o coração. Não há dúvida: ao contrário das outras crianças, separadas ainda das manchas negras por uma confortável margem branca (e embora lhe volte ainda as costas), Simone já está no centro da tempestade.