quinta-feira, 11 de junho de 2015
A Fotografia existe?
"Por exemplo, Cristina Garcia (sic) Rodero e o seu trabalho
sobre a Espanha
Oculta ensinou(sic)-me
que não se fazia
um projeto em
três meses, que era uma questão de anos."
(Txema Salvans, Photo
Réponses hors série nº 19, p.91)
A marca de água
da fotografia foi a sua fidelidade ao real. É essa fidelidade que Henry Fox
Talbot (o inventor do negativo) reivindica em 1846, em The pencil of Nature: "Uma vantagem da descoberta da arte
fotográfica será o permitir-nos introduzir nos nossos quadros uma imensidade de
minúsculos detalhes que se somarão à veracidade e ao realismo da representação,
mas que nenhum artista se daria ao trabalho de copiar fielmente da
natureza"; é por causa dessa fidelidade que Baudelaire - em 1859, num
texto fascinante em que consegue, simultaneamente, ter toda a razão e não ter
razão nenhuma - arrasa a Fotografia: "Em matéria de pintura e estatuária,
o "Credo" atual das gentes do mundo, sobretudo em França (e não me
parece que quem quer que seja ouse afirmar o contrário), é este: ‘Creio na
natureza e só na natureza (há boas razões para isso). Creio que a arte é e só
pode ser a reprodução exata da natureza (uma seita tímida e dissidente pretende
que os objetos repugnantes da natureza sejam afastados, como um penico ou um
esqueleto). Assim, a indústria que nos desse um resultado idêntico à natureza
seria a arte absoluta.’ Um Deus vingador satisfez os votos desta multidão.
Daguerre foi o seu Messias". É mesmo esta a postura de Barthes, em A câmara clara (1980): aí, a fotografia
(qualquer fotografia) "diz: ‘isto, é isto!, é assim!’ Mas não diz mais
nada"; "não pode sair desta pura linguagem deítica"; "não
se distingue nunca do seu referente (daquilo que representa)".
Quanto a esta
questão, estamos conversados: a história encarregou-se de nos mostrar como as
fotografias, ao longo do tempo, têm sido manipuladas, de modo a delas excluir
certas presenças, e ainda este ano deu-nos mais um exemplo significativo, na
versão só para homens da fotografia do desfile de repúdio pelo atentado contra
a redacção de Charlie Hebdo, em
Paris, publicada não sei em que jornal israelita (ainda mais próximo de nós,
temos o caso da imagem de Jorge Jesus, entretanto transferido para o Sporting,
obliterada da fotografia comemorativa do bicampeonato de futebol do Benfica). O
próprio Txema Salvans, na mesma entrevista cujo excerto serve de epígrafe a
esta breve (notar a ironia) reflexão, se demarca desse mito fundador da
Fotografia: "tento documentar através do meu olhar que não é objetivo.
Como é que o poderia ser? Na fotografia, não há objetividade" (idem,
p.92).
Na mesma semana
em que li a entrevista de Salvans, descobri, na imprensa nacional, que a
exposição Génesis, de Sebastião Salgado, vem a Lisboa: estará - como se diz -
patente ao público na Cordoaria Nacional, em Lisboa, de 8 de abril até agosto.
"Fotógrafo brasileiro levou oito anos a concretizar projeto",
subtitula o Público. Outros falam de
dez anos, mas não é o número em si que interessa: é a palavra "anos",
precedida de um numeral. Junte-se-lhe a apreciação que Salvans faz do trabalho
de Cristina García Rodero e parece ser, agora, não o real – cuja dívida a
Fotografia, pelos vistos, já pagou (embora o mais provável seja que a tenha
esquecido) – , mas sim o tempo, aquilo que sanciona/valoriza a prática
fotográfica. Talvez que a fatalidade da Fotografia não seja, afinal, a sua
dependência da realidade, mas sim a sua incapacidade de existir sem alibis.